quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Sobre abacates, bundas e tradução
Entre preferências e possibilidades
Escrito por Alison Entrekin em 19 de novembro de 2015

Vitamina de abacate me embrulha o estômago só de pensar. Pra mim, abacate é para comer em saladas e sanduíches ouin natura com um pouco de vinagre e sal no lugar do caroço – o que, por sua vez, provoca arrepios em alguns brasileiros. E essa não é a única disparidade entre brasileiros e australianos. Nos meus primeiros anos no Brasil, eu me divertia com o fosso entre o que era considerado um corpo bonito aqui e o corpo “perfeito” na minha terra. As coxas e o traseiro – à la É o tchan – reinavam aqui (e ninguém tinha peito de silicone na época), enquanto lá as gostosas eram as magricelas peitudas, sem bunda. Lá, faziam topless na boa, mas cobriam o bumbum com maiôs enormes (porque mostrá-lo era de mau gosto), enquanto aqui ninguém fazia topless, mas nádegas de fora não faltavam. Falando em estilo, tem gente que acha que mudança de assunto pede um novo parágrafo, enquanto outros acreditam que parágrafo é que nem coração de mãe, sempre cabe mais. Alguns preferem colocar informações adicionais entre colchetes, enquanto outros são adeptos de travessões. Tem até autor que evita os dois, usando somente vírgulas e pontos finais para gerenciar suas ideias no papel. Eu, particularmente, gosto de um pouco de variedade, mas vírgula depois de travessão nem pensar em inglês. É muito feio.
É por isso que acho uma perda de tempo a maioria das discussões sobre se determinado tradutor “melhorou” ou “piorou” o texto do fulano, porque tendem a pender para o gosto pessoal. Na maioria das vezes, quem critica ignora os requerimentos da língua de chegada, como se a única fidelidade possível fosse ao original, e demonstra um profundo desconhecimento das milhões de escolhas que têm de ser feitas ao longo do processo tradutório – mais ou menos como comentarista de futebol que nunca jogou na vida. E digo mais, mesmo conhecendo as duas línguas e as milhões de escolhas que têm de ser feitas ao longo do processo tradutório, é difícil pra dedéu destrinchar a tradução de outra pessoa e entender o porquê disso ou daquilo sem ter colocado a mão na massa.
Não estou defendendo todos os tradutores. É claro que há tradutor que deixa a desejar, mas há um número igual de comentaristas que falam besteira na análise superficial das traduções. Foi o caso de uma que li recentemente cujo título em inglês era “Can Lorin Stein translate Michel Houellebecq into a Great Writer?” (algo como “Conseguiria Lorin Stein fazer Michel Houellebecq um grande escritor na tradução?”) O artigo faz uma série de questionamentos sobre a tradução de estilo no romance mais recente de Houellebecq, Soumission, Submissão no Brasil. Só que, a meu ver, derrapa em algumas conclusões, atribuindo as escolhas de Stein às preferências estilísticas dele e do público americano. O problema com isso é que estilo é um bicho endêmico, cujo habitat é, muitas vezes, limitado a uma língua e uma cultura específicas. Freqüentemente resiste à tradução direta – e as transformações necessárias para que o texto seja legível na língua de chegada não são necessariamente uma questão de preferência, mas de possibilidade.
A resenha em questão se detém na análise da sintaxe quebrada de Houellebecq, cujo texto, segundo o autor (já deixando escapar vários juízos de valor), “sofre” com vírgulas demais e orações supérfluas. Para ele, as frases de Stein, com menos volteios, são um claro exemplo de como o tradutor “limpou” o texto de Houellebecq. Idem para o número de frases: onde em Houellebecq tem uma, em Stein tem duas, e por aí vai. Não que o autor ache ruim, ao contrário, parece até gostar, mas alega que quebra o ritmo e questiona se são escolhas que cabem ao tradutor. Veja bem, não li Soumission em francês, muito menos em inglês, e não posso dizer absolutamente nada a respeito. De repente Stein meteu a caneta vermelha mesmo. Meu problema é com a argumentação de partes do artigo, que analisa certas frases como se fosse possível transpor tudo para o inglês sem mexer na sintaxe. Cita inversões e alterações de pontuação como se fossem traições. Mas no final diz que, caso não tivessem sido feitas, o leitor americano ficaria profundamente confuso.
Com isso, ora bolas, creio que já respondeu à própria pergunta. É claro que tais escolhas cabem ao tradutor. Se não as tomássemos, qual seria a diferença entre nós e o Google Translate? Pra mim, o tradutor é uma espécie de ator, que precisa representar o original de forma tão convincente que o leitor abandone qualquer descrença. Só que em outras palavras. E outra gramática. Analisar frases isoladamente apenas pescando diferenças léxicas e sintáticas é ignorar todo o resto do trabalho representativo, que precisa dar conta de registro, tom, atmosfera, idiomaticidade etc. e ainda levar em consideração os usos e costumes da língua de chegada.
Meu outro problema com esse tipo de análise é que dificilmente dá voz ao tradutor. Por isso, adoro ler entrevistas comoesta, em que o Stein discute a tradução de uma única frase de Soumission, que foi o gatilho para ele encontrar a voz de Houellebecq na tradução. Os apontamentos dele demonstram sua sensibilidade e preocupação com o ritmo, e ele reconhece que, embora a sintaxe não seja a mesma, a frase em inglês preserva outros aspectos do original, tão ou mais importantes que a sintaxe.
O livro Translating Style, de Tim Parks – escritor e tradutor britânico radicado na Itália há mais de trinta anos – oferece uma discussão instigante do trabalho dificílimo de traduzir estilo, com capítulos sobre as traduções italianas de escritores anglófonos como D. H. Lawrence e James Joyce, entre outros. Mas no primeiro capítulo ele começa com algo mais prosaico, comparando um trecho de um guia turístico italiano com uma tradução do mesmo para o inglês. A primeira coisa que chama atenção ao ler o inglês é que é cômico – eu mesma caí na gargalhada quando o li. Mas o guia não foi escrito com a intenção de arrancar risadas dos leitores. Ao contrário, a intenção era de dar água na boca, descrever um lugar tão lindo para o leitor sentir que não pode deixar de visitá-lo. Mas a tradução mal-sucedida é fiel apenas ao original, léxica e sintaticamente, sem considerar que o que soa poético para um italiano pode parecer exagerado demais para um anglófono.
Não podemos esquecer que pessoas de diferentes culturas recebem e processam informações de forma diferente, e me parece óbvio que o meio de comunicação – neste caso, a língua – tenha que se desdobrar para dar conta disso. É quase como se tivéssemos os mesmos aparelhos de rádio, mas transmitíssemos as idéias em freqüências diferentes. Se ninguém ajustar a freqüência, a transmissão não chega ao destino.
É fácil dizer que um texto é melhor ou pior; mais difícil é reconhecer que melhor e pior são juízos de valor absolutamente subjetivos e/ou culturais, como os abacates e as bundas no primeiro parágrafo. O que um acha bom, o outro acha ruim; e não poderia ser diferente, neste mundo de diferenças.

Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.

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